quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Os comedores de baiacu

No Marajó: preferi não arriscar. Voltaram todos pro braço do mar. Eles, indefesos, inchados, com temor de mim. Eu, covarde, dedos arribados e sorriso nervoso, com medo deles.

Homenagem ao nosso baiano João Ubaldo Ribeiro, que ganhou ontem o prêmio mais cobiçado por escritores de língua portuguesa – o Prêmio Camões. Para quem não conhece, uma crônica dele que adoro, sobre baiacu. Principalmente porque às vezes faço destas.

Os Comedores de Baiacu
João Ubaldo Ribeiro

O baiacu, como haverão de saber os amáveis leitores, é o nome popular de alguns peixes aqui no Brasil (ou pelo menos em Itaparica; Itaparica é Brasil), geralmente da desagradável família dos tetradontídeos. Para ser mais claro, trata-se de um vulgar actinopterígio, teleósteo, da ordem dos plectógnatos, da já mencionada família tetradontídea e, julgo eu, na maior parte dos casos, é um exemplar da espécie em que Lineu tacou o nome de Lagocephalus laevigatus. Não sei por quê. Lineu tinha dessas coisas. Qualquer um que já viu um baiacu percebe logo que ele não pode ser um Lagocephalus e muito menos um laevígatus.
Mas, enfim, eis que o baiacu abunda nestas plagas. Outro dia mesmo, pescando mais Luiz Cuiúba, ferrei uns dez, tudo maiorzinho de um palmo, pescaria até boa, se fosse peixe que prestasse. Até os quatro dentinhos dele chateiam o vivente, porque só são quatro, como o nome da família indica, mas são navalhas, estropiam anzóis, às vezes cortam até os arames das paradas. E o miserável, ainda por cima, é guloso, engole o anzol de vez e é um sacríficio para tirar tudo lá de dentro. Para não falar que é metido a batalhador e então o sujeito está ali pedindo a Deus um vermelhinho, um dentão, uma xumberga, um beiju-pirá, uma coisa assim decente, e aí a vara verga, a linha se estica e sai em disparada para o lado, peixe grande comeu! Comeu nada. O camarada sua, luta pra cá, luta pra lá, mete a mão na linha, faz o diabo, e quem chega, sacudindo vergonhosamente a ponta da linha? Um baiacu. Não pode haver maior tristeza para quem já tinha garantido ao companheiro de pescaria que "esse bicho aqui na linha é uma sororoca e das grandes".
Cuiúba não deixava que eu jogasse fora os baiacus e, lá pelas tantas, havia uma pilha deles, ainda espadanando a pocinha do fundo da canoa.
- Ha-ha! - exclamou Cuiúba, brandindo facinorosamente a faca enferrujada, mas amoladíssima, que ele sempre leva.
- Vou fazer filé de baiacu, que amanhã eu como uma moqueca!
E passou, com habilidade um tanto assustadora, a eviscerar, esfolar e desossar os baiacus, jogando "filé" atrás de "filé" para dentro do coifo. Alguns dos filés, inclusive, continuavam se batendo, não fibrilando como carne de cágado, mas se agitando mesmo, quase como peixes vivos. Não creio que isto possa vir a tornar-se uma atração turística, nunca vi coisa mais esquisita. E meu dever, embora Cuiúba saiba mais de peixes do que quarenta delegados regionais da Sudepe, era fazer uma advertência. Nós, biólogos, temos obrigações sociais.
- Cuiúba, você está maluco? Você vai comer isso? Isso é um Lagocephalus laevigatus! O famoso peixe venenoso, isso mata em poucas horas!
- Já tinha ouvido gente chamar isso de peixe-sapo, mas esse nome que você falou nunca ouvi falar - disse Cuiúba, jogando outro filé na cesta.
- Um anfíbio anuro? - disse eu. - Não seja ridículo, isso é um Lagocephalus.
- Isto - disse Cuiúba, metendo a faca na barriga de mais um peixe - é um baiacu. É o melhor peixe do mar e eu vou comer tudo de moqueca.
- Mas voce não sabe que baiacu é venenoso?
- É pra quem não sabe tratar. O veneno está aqui mostrou ele, cutucando uma bolinha entre as vísceras. - Tirando isso, fica logo o melhor peixe do mar.
- Mas você não sabe que de vez em quando morre um depois de comer baiacu, às vezes famílias inteiras, e de gente acostumada a comer baiacu?
- É, eu sei. Agora mesmo, semana passada, morreram quatro de vez, no Alto de Santo Antônio, só sobrou um quinto, que ainda está passando mal no hospital. Eles comiam sempre baiacu, a velha fazia um escaldado com quiabo ótimo, eu mesmo comi lá várias vezes.
- E então? E ela não sabia dessa bolinha aí, não estava acostumada a tratar baiacu?
- Estava, estava. Mas ninguém está livre de uma distração, é ou não é? Uma distração assim... - e, ploft, outro filé no cesto.
- Cuiúba, deixe de ser doido, você pode morrer se comer esse negócio.
- Morro nada.
De volta ao Mercado, procurei apoio na autoridade de Sete Ratos, peixeiro antigo, diz o povo que hoje rico, da venda de peixe. Com certeza ele dissuadiria Cuiúba daquela idéia tresvariada de comer baiacu. Encontro Sete Ratos em pé diante de uma banca, com as mãos metidas numa gamela, tratando peixe. Já eram quase dez horas, passava da hora do almoço e era natural que ele estivesse ali preparando sua comida. Olhei para dentro da gamela, vi uns vinte baiacus miúdos.
- Sete Ratos, você vai comer baiacu?
- É o melhor peixe do mar!
- Mas essa desgraça é venenosa, você não sabe que é venenosa?
- Ah, é. Semana passada mesmo, morreram acho que quatro ou cinco, lá no Alto. Família acostumadinha a comer baiacu, nesse dia comeram... É o desacerto.
- Eu sei, Cuiúba me contou. E eu que vinha aqui justamente para lhe pedir que tirasse da cabeça dele a idéia de comer uns filés de baiacu que a gente pescou.
- Ele esfolou o peixe? Tirou a pele? Tirou justamente o que dá gosto na moqueca? Tirou de frouxidão, foi isso, tirou de frouxidão! Hem, Cuiúba, você tirou a pele porque acha que o veneno está na pele, hem? Deixe de ser frouxo, rapaz, isso tudo é conversa, o veneno nunca esteve na pele, se fosse assim eu já era defunto.
- Eu sei - falou Cuiúba. - Eu tirei porque gosto de filé de peixe, mas eu sei que o veneno está naquela bolinha da barriga.
- Que bolinha da barriga, rapaz, tem nada de bolinha de barriga, isso tudo é conversa, tem nada de bolinha na barriga. Isso aí a pessoa tira porque ninguém vai comer tripa de peixe, só francês ou senão americano. O negócio é na hora do cozimento, aí tem de cozinhar direito!
- E você vai mesmo comer essa baiacuzada, Sete Ratos?
- Ora, é o melhor peixe do mar!
Saí por ali, conversei com Turrico, que, além de garçom, é bom pescador. Ele também é muito chegado a uma moquequinha de baiacu. Mas não é veneno, Turrico? É, semana passada mesmo, no Alto... Mas só é veneno nos meses que não têm r, no mês que tem r pode comer sossegado.
- Mas Sete Ratos me disse que era no cozimento. E Cuiúba...
- Isso é tudo conversa, tudo conversa. Eu não deixei de comer baiacu. nem depois que morreu uma parenta minha uma não, duas, que eram velhas vitalinas e moravam juntas. Elas estavam acostumadas, faziam baiacu muito bem. Mas nesse dia...
- E então?
- É porque foi em julho. Julho não tem r. Ou tem?
Está certo, pensei eu sem entender nada, enquanto me dirigia à casa de meu amigo Zé de Honorina, para pegar um feijãozinho atendendo a amável e generoso convite. Comentei com ele minha perplexidade.
- Que coincidência! - disse ele alegremente. - Comadre Dagmar está aí justamente preparando uma moqueca de baiacu.
- Ah, desculpe, Zé, mas eu não como baiacu.
- Besteira sua, é o melhor peixe do mar. Agora, não se pode negar que é venenoso. Semana passada mesmo, no Alto...
- Eu soube, eu soube. E você vai comer assim mesmo?
- Claro que vou, mas não se preocupe que eu mandei preparar uma garoupinha para você, separada.
Entre limões, mãos de coentro, pilhas de cebolas, alhos, malaguetas e tomates, Dagmar dava os últimos retoques na moqueca de baiacu. Aproximei-me, estava tudo muito cheiroso. Observei como aquela sua moqueca de baiacu era famosa, como Zé tinha confiança em comer aquele peixe venenoso quando era ela quem o preparava. Qual o segredo para tratar o baiacu?
- Ah, não sei - disse ela. - Eu mesma não como.

Publicado no livro "Arte e Ciência de Roubar Galinha - crônicas", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, página 45

7 comentários:

Anônimo disse...

Neide, adorei a foto (que bonita, você!), os baiacus, a crónica, a história, tudo! Adorei o post!

Beijo *
Mariana

Fer Guimaraes Rosa disse...

Ha Ha Ha Ha!
Esxxzzzpertissima essa Dagmar!
Eu, com certeza, tambem iria de garoupa.
Adorei te ver. :-*

beijoo,

Anônimo disse...

a mãe uma vez comprou baiacu(logo quando nos mudamos para o ES) e depois que a vizinha constatou que ela podia matar a família inteira ela tratou de oferecer os peixinhos aos primeiros pedintes que passaram,porém, após obter a garantia de que eles saberiam preparar rsrsrsrs tu estás muito linda nesta foto,a Laura adorava quando bem menor ver baiacus ao vivo quando tinha oportunidade,beijo!

Anônimo disse...

Neide, parabéns pelo site e pelo post. Acho que você fez bem em não encarar. Pena que não teve o mesmo cuidado com o sol. Vê se usa filtro solar da próxima vez.
Abs,

Unknown disse...

Neide,
esses exemplares na foto com você me parecem ser uma espécie com que já trabalhei (sou bióloga) chamada Colomesus psittacus. Esses animais são encontrados no norte do Brasil (principalmente Pará) e apresentam altíssimos níveis de toxicidade. E não é só na "bolinha no meio da barriga" que te veneno não, a tetrodotoxina (o nome da toxina dos baiacus) é encontrada também na pele, gônadas, trato gastrointestinal, no músculo e óbvio, no fígado.
Bom, é isso aí. Parabéns pelo blog!
Abraços!!!

Neide Rigo disse...

Zé, obrigada pelo conselho. Vou tentar seguir da próxima vez rss.

Obrigada, Sol! Adorei saber disso.

Um abraço,
Neide

Horacio de Mangue Riders disse...

Parabéns.
Nós sim fazemos do baiacu atração turística. Levo turistas pasar o dia dentro do mangue na casa do Elias, pescador que trata os baiacús. E os turistas amam filmar tudo e comer.